Sinopse: O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou o reconhecimento e execução de uma sentença arbitral do ICSID em favor da Gold Reserve contra a Venezuela, rejeitando as alegações de imunidade de jurisdição e de violação da ordem pública. A decisão permite a execução de mais de 1,1 mil milhões de dólares, incluindo juros e custas, e a empresa está a tentar penhorar ativos venezuelanos em Portugal e nos EUA, onde já obteve uma Ordem de Embargo sobre ações da PDV Holding, Inc.. O caso destaca a tendência europeia de restringir a imunidade dos Estados na execução de laudos arbitrais e pode ter impacto em futuras execuções contra Estados.
Em 20 de fevereiro de 2025, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou uma sentença arbitral, proferida em 2014 por um Tribunal do ICSID no processo n.º ARB(AF)/09/1 a favor da empresa mineira de origem canadiana Gold Reserve, no montante total de 713 milhões de dólares contra a República Bolivariana da Venezuela.
Na sua decisão, os juízes da Sexta Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa decidiram que a Venezuela, enquanto Estado Soberano, não pode invocar a imunidade de jurisdição no quadro de um processo de reconhecimento de uma sentença arbitral. Além disso, o Tribunal entendeu que o Estado venezuelano renunciou a essa imunidade ao assinar o Acordo entre o Governo do Canadá e o Governo da República da Venezuela para a Promoção e Proteção dos Investimentos (TIB Canadá-Venezuela), em 1 de julho de 1996, e ao entrar em acordo com a Requerente, em 17 de julho de 2016, para o pagamento dos valores estabelecidos na sentença.
Acresce que o Tribunal considerou que a sentença em causa não constitui uma violação da ordem pública internacional do Estado Português, nem dos princípios fundamentais do direito da União Europeia, nem da Constituição.
Assim, o Tribunal da Relação decidiu decretar o reconhecimento da sentença arbitral proferida pelo Tribunal do ICSID nos termos pretendidos pela Requerente.
A empresa canadiana pode então executar a sentença, sendo o seu montante, incluindo juros legais e custos de arbitragem, superior a 1,1 mil milhões de dólares dos EUA.
Conforme a Gold Reserve, a empresa teria obtido ordens de penhora de contas bancárias da Venezuela em Portugal que contêm mais de 1,4 mil milhões de dólares em depósitos. Contudo, a empresa admitiu que a cobrança destes montantes não estaria garantida devido a várias complicações decorrentes do sistema jurídico português, uma vez que a prioridade na cobrança depende não só do tipo de conta penhorada, mas também do tipo de credor envolvido.
Além disso, a empresa está também a prosseguir um processo de execução nos Estados Unidos, perante os tribunais do Distrito de Columbia e do Distrito de Delaware. Neste último processo, o tribunal emitiu uma Ordem de Embargo fieri facias sobre as acções detidas pela empresa pública venezuelana Petróleos de Venezuela, S.A. (PDVSA) na empresa americana PDV Holding, Inc. (PDVH), com base no facto de a empresa pública ser um alter ego da República da Venezuela. Esta decisão foi objeto de recurso por parte do Governo da Venezuela e da PDVSA perante o Tribunal de Apelações do Terceiro Circuito, e o recurso está atualmente a aguardar uma decisão.
Argumentos da Venezuela para recusar o reconhecimento da sentença arbitral
A República da Venezuela, na sua resposta ao pedido de reconhecimento da sentença arbitral proferida pelo tribunal do ICSID, invocou essencialmente dois argumentos de defesa:
1.- Imunidade de Estado.
A este respeito, a República da Venezuela alegou que gozava de imunidade de jurisdição perante os tribunais portugueses, nos termos dos artigos 5.º e 6.º da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus bens (CNUIJ) adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2 de dezembro de 2004.
2. Violação da ordem pública do Estado Português
Invocando decisões em que a sentença estrangeira foi considerada incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (artigo 980 f) do Código de Processo Civil), a República da Venezuela argumentou que a sentença arbitral em causa, ao condenar a Venezuela por violar a obrigação de conceder à Requerente um tratamento justo e equitativo nos termos do artigo II. 2) do TBI Canadá-Venezuela, emitiu certas “opiniões” e juízos de valor sobre a decisão tomada pela Administração da Venezuela que, na sua opinião, constituíram um ataque manifesto aos princípios e direitos do Estado Venezuelano (artigo 980 f) do Código de Processo Civil), do TBI Canadá-Venezuela, que, no seu entender, constituíram um manifesto ataque aos princípios e direitos fundamentais de um Estado de Direito Democrático, violando os princípios constitucionais, o princípio da não ingerência e o princípio da proporcionalidade previstos no ordenamento jurídico português.
Análise da Decisão do Tribunal da Relação
1. Regras aplicáveis ao reconhecimento das sentenças estrangeiras
Em primeiro lugar, o Tribunal analisou as disposições aplicáveis ao reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras em Portugal.
O reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira é, segundo o Tribunal, regulado pela Lei da Arbitragem Voluntária(LAV), aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (Capítulo X), salvo se for aplicável a Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras ("Convenção de Nova Iorque" ou "CNI") ou outro tratado ou convenção de que o Estado Português seja parte (art. 55.º da LAV). Tal decorre do facto de vigorarem na ordem jurídica interna as normas previstas na CNI, por serem normas de direito internacional com primazia e aplicação preferencial sobre o direito interno, nos termos do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Assim, as disposições do Capítulo X da LAV, relativas ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, têm um âmbito de aplicação subsidiário, aplicando-se essencialmente às sentenças arbitrais de Estados que não hajam ratificado a CNI e com os quais Portugal não haja assinado qualquer outra convenção internacional sobre a matéria. No caso em apreço, a sentença foi proferida por um Tribunal Arbitral com sede em Paris, França, país que ratificou e é parte na CNI, tal como Portugal.
Consequentemente, embora nos termos da LAV uma sentença arbitral estrangeira não seja tratada do mesmo modo que uma sentença "nacional" e esteja sujeita a um processo de reconhecimento, os fundamentos de recusa de reconhecimento são os previstos no artigo V da CNI. No que respeita à recusa de reconhecimento prevista no artigo 56.º da LAV, por sua vez, esta baseia-se na Lei Modelo da UNCITRAL (Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional) e os fundamentos correspondem essencialmente aos previstos na CNI.
Ora, a CNI prevê, de forma exclusiva e exaustiva, todos os fundamentos susceptíveis de serem invocados para recusar o reconhecimento.
2.- Imunidade do Estado
Em primeiro lugar, o Tribunal rejeitou o argumento da imunidade, tanto quanto à execução como quanto à jurisdição, invocado pela Venezuela.
O Tribunal considerou, por um lado, que não era apropriado examinar a imunidade de execução dos bens da Venezuela na fase de reconhecimento da sentença. Por outro lado, assinalou que a Venezuela também não gozava de imunidade de jurisdição, uma vez que, através da convenção de arbitragem assinada com a Requerente, havia renunciado à sua imunidade de jurisdição, tal como decorre, inter alia, do artigo 17.º, c), da CNUIJ, que constitui uma das exceções à imunidade de jurisdição. Por conseguinte, o Tribunal entendeu que a República da Venezuela, quer ao referir-se expressamente à CNI, quer ao subscrever o TBI Canadá-Venezuela, deu o seu consentimento ao exercício da jurisdição pelos tribunais perante os quais se requereu o reconhecimento da decisão arbitral, o que preenche os requisitos da hipótese legal do artigo 7 1) a) da CNUIJ.
Assim sendo, a Venezuela não pode invocar a imunidade de jurisdição.
Além disso, o Tribunal constatou que a República da Venezuela reconheceu e aceitou a sentença arbitral num Acordo de Compensação celebrado com a Gold Reserve em 17 de julho de 2016, após ser proferida a sentença arbitral, no qual reconheceu a dívida e acordou com a empresa os termos em que pagaria os montantes reconhecidos. Adicionalmente, nos termos da Cláusula 7 do Acordo de Compensação, a República da Venezuela renunciou expressamente à imunidade de jurisdição dos tribunais arbitrais constituídos para dirimir os litígios emergentes desse Acordo e dos tribunais aos quais é requerida a execução das decisões proferidas por esses tribunais arbitrais.
3.- Violação da Ordem Pública
Em relação à violação da ordem pública, citando numerosa jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (CSJ) a este respeito, o Tribunal da Relação começou por determinar que a formulação negativa da alínea b) do artigo 5.2 da CNI deve ser interpretada restritivamente, visando apenas a ordem pública internacional relevante para o direito internacional privado, não podendo a simples violação de qualquer norma de aplicação imediata ou necessária em vigor no ordenamento jurídico do Estado do foro ser invocada para provocar a ação de reserva de ordem pública internacional.
No entender do Tribunal, a decisão proferida não viola a ordem pública internacional do Estado Português, na medida em que o seu ordenamento jurídico consagra regras e princípios semelhantes aos aplicados pelo Tribunal Arbitral, tais como a promoção e proteção dos investimentos, a autonomia privada e as regras relativas ao cálculo da indemnização.
Na opinião do Tribunal, só quando os superiores interesses do Estado Português são comprometidos pelo reconhecimento de uma sentença estrangeira, tendo em conta o seu resultado, é que cabe opor-se ao reconhecimento de uma declaração de direito efetuada por uma ordem jurídica estrangeira. Assim, considerou que a ofensa à ordem pública do Estado em que se pretende o reconhecimento da sentença deve decorrer diretamente desse reconhecimento e não do conteúdo da sentença que se pretende reconhecer. Por conseguinte, o reconhecimento de uma sentença estrangeira só deve ser recusado quando o resultado do reconhecimento de tal sentença colidir flagrantemente com os interesses de primeira ordem protegidos pela ordem jurídica portuguesa.
Acresce que o Tribunal verificou a existência de um fator ainda mais pertinente para afastar a alegada violação da ordem pública invocada pela República da Venezuela, dado que não é objeto do reconhecimento a reavaliação do fundo da decisão proferida na sentença arbitral, além da apreciação da alegada incompatibilidade manifesta do reconhecimento da sentença arbitral em Portugal com a ordem pública internacional do Estado Português.
De facto, segundo o Tribunal, por força do artigo 56.º da LAV e do artigo 5.º da CNI, a ordem pública internacional do Estado Português só é fundamento de recusa de reconhecimento quando conduza a um resultado manifestamente incompatível com a mesma.
Por outro lado, o Tribunal considerou que o princípio da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados, nomeadamente do Estado da Venezuela, consagrado no artigo 7.º, alínea 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, também não foi violado, uma vez que a decisão arbitral foi proferida ao abrigo do TBI Canadá-Venezuela, tendo aplicação a CNI. Tal acarreta a presunção de validade internacional das sentenças arbitrais proferidas no território de outros Estados e a obrigação de reconhecê-las e executá-las nos seus territórios, no respeito pela obrigação internacional assumida pelo Estado Português perante o Estado Venezuelano, enquanto parte na CNI.
Por fim, o Tribunal observou que a invocação de uma violação do princípio da proporcionalidade era irrelevante, na medida em que o Tribunal não podia analisar o cálculo efetuado na sentença arbitral.
O Tribunal da Relação considerou que o Tribunal Arbitral havia condenado a República da Venezuela a pagar uma indemnização que não parecia desproporcionada, dada a natureza dos acordos e os grandes investimentos que exigiam. No seu entender, a decisão também não se afigurava arbitrária, desde que as provas documentais indicavam que o Tribunal Arbitral havia tomado em consideração as circunstâncias do caso concreto. Acresce que ambas as partes tinham consentido na jurisdição dos tribunais arbitrais do ICSID.
Por outro lado, o Tribunal atendeu ao facto de a sentença arbitral se ter tornado definitiva, tendo sido confirmada pelo Tribunal da Relação de Paris em 7 de fevereiro de 2017.
O Tribunal considerou que, no caso em apreço, estavam preenchidos todos os requisitos de fundo e formais para o reconhecimento. A decisão arbitral foi proferida em França e o seu reconhecimento foi requerido em Portugal, ambos os países partes da CNI, tendo a Requerente juntado cópia certificada da sentença arbitral e cópia da convenção de arbitragem, bem como as respectivas traduções, de modo que os requisitos formais foram verificados, não havendo qualquer violação das disposições da CNI e da LAV nos seus aspectos formais e de autenticidade.
Por conseguinte, o Tribunal decidiu que este fundamento de recusa de reconhecimento da decisão arbitral, bem como os demais fundamentos invocados deviam também ser julgados improcedentes, impondo-se que o reconhecimento fosse declarado admissível nos termos reclamados pela Requerente.
Antecedentes do litígio
Desde 1992, a Gold Reserve é responsável pela exploração de “Las Brisas”, um depósito mineiro localizado no município de Sifontes, no Estado de Bolívar, na Venezuela. Os estudos de exploração indicam que esta área possui reservas estimadas em 10,2 milhões de onças de ouro e 1,4 mil milhões de libras de cobre.
Em 2008, porém, como parte das políticas de nacionalização promovidas pelo Presidente Chávez, a empresa foi destituída da sua participação na exploração. Perante esta decisão, a Gold Reserve apresentou um requerimento de arbitragem ao Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos (ICSID), que, em setembro de 2014, profiriu uma sentença a seu favor, em que ordenou à Venezuela pagar à empresa mineira uma indemnização de 740,3 milhões de dólares, acrescida de juros e custos legais, com base na violação do artigo II. 2) do Acordo entre o Governo do Canadá e o Governo da República da Venezuela para a Promoção e Proteção de Investimentos, assinado em Caracas em 1 de julho de 1996.
Em 9 de fevereiro de 2016, a Gold Reserve anunciou que tinha assinado um Memorando de Entendimento com a República Bolivariana da Venezuela, visando o pagamento da sentença arbitral do ICSID a favor da Empresa em relação ao Projeto Brisas, a transferência dos dados técnicos de mineração previamente coletados pela Empresa e o desenvolvimento do projeto de ouro-cobre de Brisas e do projeto adjacente de Cristinas, que seriam combinados em um único projeto (o “Projeto Brisas-Cristinas”) pela Empresa.
Em conformidade com os termos do Memorando, a Venezuela pagaria a sentença, incluindo os juros acumulados, e concluiria uma série de acordos de joint venture para a implementação do Projeto Brisas-Cristinas. Adicionalmente, a Venezuela pagaria um montante a acordar relativamente aos dados técnicos mineiros fornecidos pela empresa para o projeto Brisas-Cristinas e contribuiria com 2 mil milhões de dólares como uma participação no projeto.
Na sequência deste memorando, foi assinado um acordo de resolução através do qual a Venezuela assumiu o compromisso de pagar à Gold Reserve um total de cerca de 1,032 mil milhões de dólares relativamente à sentença, com um pagamento inicial de 40 milhões de dólares e, posteriormente, uma série de prestações ao longo dos dois anos seguintes. O Estado venezuelano garantiu parcialmente as obrigações da Venezuela com dívida soberana.
Foram ainda assinados vários acordos para a exploração do projeto Brisas-Cristinas, para o que foi criada a empresa mista Siembra Minera S.A., 55% da qual pertence ao Estado da Venezuela e os restantes 45% à Gold Reserve.
Contudo, além do pagamento da entrada e de alguns pagamentos parciais (29,5 milhões em agosto de 2017 e 14,9 milhõesem outubro de 2019), o governo venezuelano nunca deu cumprimento ao acordo.
Em 7 de fevereiro de 2017, o Tribunal da Relação de Paris rejeitou o pedido da Venezuela de anulação da sentença.